Por Atarde
Primeira mulher negra formada médica no país, em 1909, ela tem parte de seu legado preservado em um memorial e nas edições históricas de A TARDE.
O
simbolismo de ser pioneira, desbravar e abrir novos espaços. A baiana Maria
Odília Teixeira inspira porque correu para que as novas gerações pudessem voar.
Nascida em São Félix, no recôncavo baiano, em 1884, foi a primeira médica negra
do Brasil. Se formou em 1909 na prestigiada Faculdade de Medicina da Bahia, no
Terreiro de Jesus, fundada um século antes. Era a única mulher em uma turma com
48 homens.
Em
Salvador, Maria Odília tem um memorial em sua homenagem, criado em 2023, na
Escola Baiana de Saúde Pública (ESPS), vinculada à Secretaria Municipal de
Saúde de Salvador (SMS), no bairro do Comércio. O espaço pode ser visitado pelo
público, gratuitamente, mediante agendamento prévio. Foi montado a partir dos
estudos de Mayara Priscilla de Jesus dos Santos, autora de uma dissertação
sobre ela, e tem curadoria de Mariana Jaspe. Fotos, documentos e vídeos ajudam
a recontar a história da médica baiana.
Nas páginas de A TARDE também estão preservadas referências e citações a Maria Odília Teixeira, em edições desde 1914, quando foi citada em coluna social junto com outras pessoas ilustres do Estado que faziam aniversário; até 1970, em um artigo que destaca as mulheres na medicina. “Reuniram-se sexta-feira, num almoço de amizade, os médicos da turma de 1909, formados pela Faculdade de Medicina da Bahia O agape realizou-se num dos salões do palacête do Clube Fantoches da Euterpe", diz trecho de outra nota social, dessa vez na edição de 26 de dezembro de 1949, quando o nome da médica aparece listado entre os formandos da turma de 1909 que comemoravam os 40 anos da colação de grau.
Faculdade de Medicina do Terreiro de Jesus, onde Maria Odília se formou
Integrante
do Núcleo de Educação Permanente em Saúde da ESPS, Maria Cândida Queiroz
explica que o Memorial Maria Odília foi criado para evidenciar o quanto a
médica é referência para a saúde não só na Bahia, mas no Brasil. Segundo
Cândida, a proposta da ESPS é desenvolver uma educação em saúde que seja ao mesmo
tempo antirracista, pois a maioria do quadro da saúde pública no país é formado
por mulheres negras; e, também comprometida com o Sistema Único de Saúde (SUS).
"Enxergamos Maria Odília como essa semente que cresceu e frutificou. E a
educação tem esse papel de semear e disseminar", afirma a servidora da
SMS.
TEMA
DE ESTUDO
Em sua dissertação - "Maria Odília Teixeira: A Primeira Médica Negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884-1937)" - a mestra em história Mayara Priscilla de Jesus dos Santos faz um apanhado biográfico e da trajetória da personagem histórica. Para isso, entrevistou um dos filhos de Maria Odília, José Léo Lavigne. Os descendentes da pioneira da medicina seguiram a profissão dela, que era também a do pai de Odília, José Pereira Teixeira.
Fac-símile da dissertação de Maria Odília Teixeira na Faculdade de Medicina | Foto: Repositório da UFBA – Reprodução.
A
médica nasceu de uma relação interracial. O pai era branco e a mãe, Josephina
Luiza Palma, negra. A avó de Maria Odília, mãe de Josephina, foi alforriada
antes da abolição oficial. O contexto histórico da época em que Odília nasceu
era o de uma sociedade que havia saído há menos de 30 anos de um longo período
de escravização que durou quase 400 anos. Ela foi educada e entrou para uma
faculdade onde a maioria dos estudantes eram brancos e da elite, em uma época
em que as mulheres, em geral, e, principalmente, as negras, buscavam espaço na
sociedade não somente racista, mas patriarcal.
“Imagino
o quanto essa vivência [estudar medicina em uma faculdade de homens brancos]
deve ter sido complexa e desafiadora. Mas ela tinha uma rede de apoio que foi
extremamente importante, em especial do pai e dos irmãos. Sabemos que estar
diariamente nesse tipo de ambiente pode ser adoecedor e, ainda assim, ela
conseguiu transmutar isso para se fortalecer e avançar”, opina a servidora
Maria Cândida Queiroz.
A
jovem Odília, no entanto, tinha o apoio da mãe e do pai para estudar, o que era
raro no período, pois muitos pais preferiam que as filhas fossem preparadas
para se casar. Josephina Luiza Palma e José Pereira Teixeira defendiam que a
educação deveria estar presente na vida dos filhos. Em 1898, Maria Odília se
mudou para Salvador e foi estudar no Ginásio da Bahia.
Colégio
de grande prestígio e majoritariamente masculino, o Ginásio da Bahia só abriu
as portas para meninas em 1883, um ano antes do nascimento de Odília. Na
instituição, as matérias iam desde línguas (português, latim, grego, francês,
inglês e alemão), até matemática, história, meteorologia, mineralogia e
astronomia. Quem completava sete anos de estudo recebia o grau de Bacharel em
Letras e Ciências e podia cursar o ensino superior. Maria Odília se formou no
Ginásio da Bahia em 1904, também foi a única moça da turma.
POUCO DINHEIRO
De
acordo com o depoimento de José Léo Lavigne para a dissertação de Mayara
Priscilla, seu avô não tinha dinheiro suficiente para manter Maria Odília
estudando em Salvador. Então, o principal patrocinador da futura médica era o
irmão Tertuliano Teixeira, rábula (advogado sem formação em Direito) e, por
isso, considerado o "rico da família".
Após
obter o diploma de Bacharel em Letras e Ciências, Maria Odília ingressou na
Faculdade de Medicina da Bahia, criada em 18 de fevereiro de 1808, na chegada
de D. João VI ao Brasil. Hoje, a instituição faz parte da Universidade Federal
da Bahia (UFBA). O prédio histórico no Terreiro de Jesus, onde nos tempos
coloniais funcionava o Colégio dos Jesuítas, abriga o Memorial da Medicina
Brasileira e o Museu Afro-Brasileiro. A FMB (atual Famed) foi a primeira escola
de medicina do país e da América Latina. As mulheres só puderam ingressar como
alunas em 1875.
Maria Odília, em 1909, foi a sétima mulher – e a primeira negra - a formar-se em medicina na faculdade. "Já no século atual - século XX - Maria Odília Teixeira, filha do Dr. José Pereira Teixeira, é a primeira mulher a inscrever-se no curso médico, na Bahia, nesta centúria, e a sétima, em número de ordem, a diplomar-se médica. Colou grau a 15 de dezembro de 1909 e defendeu tese sobre Curabilidade e Tratamento das Cirroses Atróficas", afirma Jayme de Sá Menezes em artigo publicado na edição de A TARDE de 12 de junho de 1970.
O
pioneirismo da médica se mostra também na escolha do tema da sua tese. As
outras seis formandas antes dela defenderam estudos nas áreas de obstetrícia,
ginecologia ou pediatria, temas considerados de mais interesse feminino. A
abordagem de Odília foi a cirrose alcoólica, ampliando o escopo do que era
possível as médicas estudarem. Formada, Maria Odília começou a percorrer o
recôncavo para clinicar. No começo, o pai e os irmãos ajudavam, mas logo ela já
tinha os próprios pacientes, a maioria mulheres.
Em 1914, ano em que a coluna social de A TARDE a listou entre as aniversariantes do dia, Odília voltou à Faculdade de Medicina para assumir a disciplina de Clínica Obstétrica da Maternidade-Escola Climério de Oliveira. Foi a primeira professora negra da Famed. Além de ensinar, atendia na maternidade às pacientes que eram, em sua maioria, negras, pobres e trabalhadoras domésticas. Maria Cândida Queiroz, da SMS, acredita que havia em Maria Odília uma “vontade de contribuir com a sociedade e, principalmente, na vida de outras mulheres negras”.
Maria
Odília com o marido Eusínio Lavigne e os filhos José Léo e Gastão Luiz | Foto:
Priscila Dórea/Reprodução/Acervo ESPS
Três
anos após a entrada na docência, a médica e professora pediu exoneração do
cargo porque precisou voltar ao recôncavo e cuidar do pai, que estava doente. A
família se mudou para Irará, onde ela se dividia entre atender os pacientes e
cuidar de José Teixeira. Em Irará, conheceu Eusínio Lavigne, advogado e amigo
de seu pai, com quem se casou aos 37 anos.
Ainda
segundo a entrevista do futuro filho do casal, José Léo, para a dissertação de
Mayara Priscilla, o pai se aproximou da mãe e contou que estava procurando uma
noiva. "Sem entender o inábil cortejo, Odília transformou-se em confidente
matrimonial, apresentando a Eusínio várias pretendentes, todas, de pronto,
rechaçadas, uma vez que não era seu intento, não era este o seu real
desejo", contou o filho do casal à historiadora.
Eusínio
conseguiu conquistar a médica e o casamento aconteceu em Irará, em 22 de março
de 1921, na casa do irmão Tertuliano Teixeira. O casal se mudou para Ilhéus,
onde Maria Odília Teixeira Lavigne foi inserida nos círculos políticos e
sociais da família do marido. Com o nascimento de José Léo e do irmão, Gastão
Luís, Maria Odília passou a cuidar da família. Mas, embora não exercesse mais a
medicina, manteve o prestígio profissional e o status de desbravadora.
"Maria Odília é referência para muitas pessoas. Mas, principalmente, para as mulheres negras. Ainda hoje a gente vivencia situações de racismo e preconceito, e histórias como a de Maria Odília estão aí para provar que somos capazes. Por isso, nos resta referenciar e agradecer o caminho que ela desbravou para nós", opina Maria Cândida Queiroz.
*Com as colaborações de Andreia Santana e Tallita Lopes *Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas *Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE/Fonte da Informação: Atarde.